Sua vida profissional exigirá cuidados especiais no pós-pandemia?

Cartum "Cuidado na rua!!!"​, por Nicolas Souza Lacerda, meu cartunista preferido, aos nove anos, em 2020.

Recentemente fui atendido por uma operadora de telemarketing que se desculpou por inconvenientes causados pela pandemia do Covid-19. Apesar de todo mundo reconhecer as dificuldades que enfrentamos devido ao isolamento social, explicou que eu estava ouvindo barulhos incomuns porque ela estava falando a partir de um orelhão.

Uai! Assustadoramente, eu não podia imaginar 1) que esses telefones públicos ainda existiam; 2) quais dificuldades ela enfrentava para vir a adotar tal meio tão alternativo; 3) como ela conseguiu me atender com paciência mesmo sem ergonomia; 4) que meus dados pessoais estavam na rua, sem máscara e desrespeitando o isolamento; dentre outras coisas.

De fato, até a padaria do bairro, o pequeno restaurante familiar e os órgãos mais arcaicos de governo se viram obrigados a virtualizar serviços em tempo recorde devido à pandemia. Eles e todo mundo!

A necessária sobrevivência das pessoas jurídicas e a urgente participação dos entes públicos acabou por mostrar que há bem mais criatividade e resiliência quando a dificuldade é grande. Ufa! E com isso, as precárias soluções para a continuidade de negócios foram tão bem vindas que têm sido profetizadas como apropriadas e permanentes.

Tomara que não!

O ambiente de trabalho não estava bom; nem o meio ambiente; tampouco a privacidade dos usuários; muito menos nossas prioridades, requisitos ou valores. A doença nos fez perceber fragilidades e enfrentá-las. Por isso, voltar ao que éramos está longe do desejável. Porém, os soluços (ops, as soluções) não podem resolver muitas fragilidades criadas e outras tantas intensificadas. Nossa! E como essas fragilidades são importantes.

Privacidade de dados pessoais de usuários se tornou mais complexa

Política de informação, complexa até para as grandes sociedades empresárias, é um terreno desconhecido para quem acabou de virtualizar suas atividades

A brasileira Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGDP) veria encerrado seu vacatio legis em agosto de 2020, quando produziria todos os seus efeitos. Não verá tão cedo. A integralidade da eficácia da lei só será vista em agosto de 2021, mas dificilmente as pequenas sociedades, empresários individuais e profissionais liberais darão conta de atender aos requisitos mais básicos de segurança de informação. Recentemente, o Município de Arapongas-PR viu dados de cidadãos que tiveram Covid-19 aparecerem na Internet. Entretanto, o problema não será exclusividade deles.

Parece-nos assustador pensar em prontuários e laudos de saúde dando sopa na Internet; pequenos empresários contratando plataformas tecnológicas discutíveis para operar online; ou funcionários transportando e tratando dados de clientes no conforto e (in)segurança do seu lar. É só durante a pandemia? Não. Há dados que ficam ali para sempre: esquecidos, perdidos, tontos e prontos para baterem de cabeça contra outros direitos dos pacientes, usuários, clientes, e/ou cidadãos (mesmo daquele engenheiro que brigou com o fiscal).

Será preciso boa vontade, criatividade e muita tecnologia para prevenir problemas em um futuro próximo, mitigar os eventuais danos a todas as partes, além de implementar alternativas sobressalentes para essas atividades.

Não é só responder "Como sua atividade pode funcionar exclusivamente pela Internet?" Que tal também responder outras? Como sua atividade pode funcionar sem Internet? E sem água (lembro de evento parecido)? E sem energia elétrica (lembro de algo também)? E sem papel? E sem combustível (hum...)? E sem transporte (ops...)? E sem pessoas?

Diversidade nas relações de trabalho pode se tornar opaca

Racismo, machismo e outras tantas formas de discriminação não podem ser vencidas em meio a avatares engraçadinhos na sociedade virtual

O espaço de trabalho está cheio de brancos (poucas brancas, quase nenhum/a negro/a), especialmente nos espaços de liderança. A dificuldade para ascender profissionalmente tendo cores na paleta é óbvia, embora eu seja muito homem-branco para sentir na pele.

Para além disso, nossa identificação com outras etnias, culturas ou orientações que nos fazem ricamente humanos esteve prejudicada nas últimas décadas. Por que? Por simples falta de acesso à diversidade.

E o que a empresa virtualizada produz? Colegas@empresa, com avatares, eventualmente uma foto de perfil, texto padrão e ensaiado, desumanização. Não sei e não sinto dificuldades de colegas se estou distante deles. Não reconheço o diferente se estáticas fotos de perfil sejam simples ícones.

E o racismo estrutural e preconceitos diversos se transformam em racismo estrutural virtual e preconceitos diversos invisíveis. Pior? Talvez. Todo mundo sabe como na Internet somos mais selvagens dada a objetificação do interlocutor. Solução? Ligue a câmera. Olhe nos olhos. Sorria. Ouça o som. Fale por microfone. Engasgue, tussa, refaça a frase ao vivo. O trabalho pode se virtualizar. Você e sua/seu colega não.

Famílias com super convivência podem ganhar prazo de validade

Antes de extinguir o ponto comercial e ir para casa com todo mundo, melhor pensar em soluções descentralizadas, flexíveis, com pouco trânsito, mas fora do ninho

Viver em grupo é difícil. Sabemos disso. Grupos familiares possuem algum resiliência adicional devido a uma afetividade sobrenatural que resiste até à distância, mas que quase se fragmenta durante longas festas de família.

Levar o padrão de estresse, escassez, administração de conflitos, atendimento a clientes para dentro de casa é ter a família como sócia ou colega de trabalho e colocá-los sob permanente tempestade. É necessária muita imaginação para reconhecer a dificuldade disso? Basta se imaginar morando com colegas de trabalho e sócios; ou ainda imaginar as sogras, sua e de colegas e sócios, trabalhando na sala ao lado.

Criar espaços alternativos, escritórios distribuídos fora de grandes prédios e próximos dos colaboradores, ou até mesmo em casas/apartamentos compartilhados para colaboradores parece muito difícil? É simples. Ou muito mais simples que deixar colaboradores e suas famílias estressados.

Saúde mental de colaboradores e administradores de negócios pode acabar de vez

Viver com equilíbrio não é um desafio qualquer. Reservar tempo para trabalhar, para descansar ou para conviver é particularmente desafiador em um grupo assíncrono, mas é possível sincronizar pessoas mesmo com distância

Oh, controle! De chefe sobre subordinados, de colega sobre equipe ou meu sobre mim mesmo. Esse controle sempre é difícil de alcançar. O resultado é surpreendentemente óbvio: se será feito, alguém trabalhará mais que outra pessoa e produzirá uma péssima alocação de pessoas, saúde, talentos, tempo, dinheiro e toda sorte de recursos.

Eis que vamos para casa, como algumas organizações anunciaram a todo pulmão. Mais fácil o controle não ficará. Assincronia da comunicação cria aquela sensação de a equipe estar sempre online, esperando seus pedidos e suas respostas. O trabalho nunca dorme e você passa a dormir muito mal, se entreter muito mal, namorar muito mal, orar muito mal, se alimentar muito mal e trabalhar muito mal.

Soluções? Claro que existem e precisamos aperfeiçoá-las sob o risco de perder muitos talentos para a doença. Covid-19? Não! Doenças mentais, doenças laborais e suas derivações. Não fiquemos separados. Novamente, ligue a câmera, ligue o microfone, compartilhe espaços de trabalho online, síncronos (ao mesmo tempo!) e trabalhe junto. Pare para o café, faça um alongamento e retome. Parou o trabalho? Descanse mesmo.

Todo o nosso desenvolvimento profissional, social, cultural e especialmente econômico dependerá que estejamos muito bem. Agir diferentemente é perder capital humano, riqueza cultural e inteligência social. E com difícil reparação.

Cuidado na rua. Ou rua com mais cuidado!

A oportunidade de mudar deve ser utilizada para virtualizar e fortalecer as facetas certas, favorecendo o que temos procrastinado indevidamente

Meu pequeno cartunista me fez refletir que os problemas mudam de geração para geração. A preocupação de minha mãe era que fôssemos atropelados enquanto brincávamos de queimada.

A rua é a mesma, mas os riscos são outros atualmente. Porém, a principal consequência é não brincarmos mais naquele espaço.

Aposto, como os demais profetas, na virtualização de quase totalidade de serviços privados e públicos. Porém, ao projetar os novos serviços não devemos supor que humanos e robôs tenham os mesmos requisitos. Também não devemos consumir os serviços como se fôssemos robôs. Decisões enviesadas manterão tudo como sempre foi: rua perigosa, mesmo que por outros perigos.

A sociedade empresária, o Estado, a escola, a igreja e outras muitas facetas da sociedade do pós-pandemia devem ser virtualizadas com o devido cuidado e projetadas com cautela ainda maior.

No final das contas, há muitos requisitos a atender. Porém, eu aposto em um requisito central: não cogitar a virtualização do lazer, da cultura, da religião, da visita aos pais e aos avós, do abraço apertado, do café com queijo, da vida, do que nos faz humanos e do que possa nos humanizar ainda mais.